Poética da reciclagem artística
Rocha Sousa

David de Almeida, entre a poética das suas viagens pela pintura, pelo desenho e pela gravura, tem sido sempre um homem que admira as suas raízes mais profundas, as matérias cuja idade parece breve e os materiais que formam as partes de cada obra: o papel que ele próprio elabora, as modelações que lhe imprime na própria secagem, ou a evocação, assim, de remotíssimas expressões gravadas na rocha - concavidades, desenhos incisos, marcas misteriosas, a génese do espírito na representação e entendimento do mundo.

É razoável dizer-se que este artista emerge oficinalmente da prática da gravura, onde ganhou uma especial independência através do domínio das técnicas e de saber o que fazer com elas. Mas não é menos verdade haver nele um profundo apelo pelas matérias virgens, do linho ao papel, da madeira aos metais - e a uma certa pintura que hoje se admite na reciclagem artística e poética de restos ponderáveis no quadro do imaginário ou do sonho que nos atravessa insónias.

Foi a este propósito que citámos, num ensaio sobre o autor, algumas significativas palavras de Fernando Azevedo: «David de Almeida - escreveu este critico e pintor - é um artista apaixonado pela fortuna do homem ter tido história. De se saber situado entre o seu conhecimento e o que se sabe no começo do conhecimento. Há uma beleza, não só ritual, nos objectos de culto que muito especialmente o interessam; interessa-lhe uma beleza formal também coincidente com os primeiros mitos, quando parecia não haver ainda um olhar habituado às formas, capaz de as transcrever como hoje; mas onde a forma conseguida não se desprende nunca, mesmo hoje, da vitalidade que concentra e da adoração que servia».

A oficina deste artista plástico, e as suas matérias, e os seus materiais, e os papéis que realmente amassa e seca e molda, tudo isso faz parte de uma história muito rica espalhada pelas paredes, da representação à representação fotográfica, arranjo rugoso dos muros, como no Alentejo, a luz vindo para logo se desprender. Aqui e além, na passagem do tempo pelas coisas e pelas obras, há fumos transformados em fundos, amarelos esverdeados, ocres e cinzentos, belíssimos cinzentos onde, num fingimento que diz a verdade, se gravam marcas simples e enigmáticas. David de Almeida percorre dessa maneira um espaço onde habitam pedras e linhas cruzadas, e às quais o artista se fideliza numa espécie de reducionismo telúrico - cada vez mais em volta do território em que se demarca, entre a terra, o xisto, as argilas, e a cerâmica ou as resinas, pigmento, lioz, tinta de óleo, poliuretano num subtil manejo cromático, acessível aos acasos e à geometria secreta das coisas.

Sem o desejar por ideologia, David de Almeida entrou assim no espaço das vanguardas, desenvolveu propostas estéticas através de investigações pacientes e muito sérias. O seu trabalho, no fim dos anos 90, tinha esse valor, reciclava a matéria e mesmo os materiais de expressão, sinais remotos, por exemplo, gravados pelos Celtas que habitaram importantes zonas do território que é hoje Portugal. E já então, cruzando culturas actuais com escritas antiquíssimas, o artista lograva lembrar-nos tanto o desenho científico de Paul Klee como as criaturas cujos instrumentos de pedra riscavam na sua matriz a abstracção gráfica, além dos bisontes, das primeiras comunicações visuais.

Seriam porventura comunicações em louvor de estranhos deuses e em nome do sucesso na caça - talvez em jogos pré­matemáticos, eventualmente pelos esquemas de linguagens cabalísticas.

Nas gravuras em base de cobre, David de Almeida, colocando sempre na dianteira a vocação plástica das matérias e dos materiais, agitava figuras solares, o ágil contorno de animais em fuga, corpos esboçados acordando de milénios de sono ou de intermináveis fossilizações, raízes quase indizíveis da nossa própria cultura. A síntese dos registos, entre a gravação e a pintura, remete-nos, de um ponto de vista antropológico, para o tempo em que as percepções se misturavam, ainda não eram distintas, e em que as sombras do saber ainda oscilavam no fundo da caverna. Mas as representações deste autor, gerando uma base linguística para as figuras do homem e do guerreiro, as máscaras, os elmos, o sol estilhaçando o visível, tiveram sempre um fio condutor que ligava as passagens de pesquisa no tempo, que supunha inexoráveis despojamentos, a história das matérias desfibradas e recicladas no tecido do imaginário poético - o advento das coisas pobres, restos matéricos singelamente manipulados como mostruários, imagem metafórica dos segredos que preservam Duchamp na memória da coisa feita verso. Assim nascem, no interior de pequenos suportes emoldurados e recobertos por vidros, como certas montagens de museu, as pequenas sobras de muitas megalomanias, madeira, matéria prensada, metal, cartão das embalagens industriais - momentos, enfim, de uma arqueologia das coisas próximas e que já foram parte ou molécula das coisas antigas. O que vemos nesses destroços aparados, expostos, catalogados, é também a história do homem, sobretudo do homem moderno, é também a imensa colecção dos nossos lixos, entre vidros, plástico, cerâmica e madeira torneada, com fracturas expostas em tom de pinho ou de nogueira. Cada lixeira pode legar-nos um museu. Cada museu pode impelir-nos para a nostalgia de um passado de brincar, restos de máquinas domésticas, televisores, lamas de mil dejectos urbanos. David de Almeida sabe o que tudo isso significa, mas parte de um princípio singelo, na humildade de cada descoberta, de cada associação, em direcção ao reencontro de um alfabeto renovado, longe das retóricas que submergiram o conhecimento e acorrentaram os homens ao consumo feérico das catedrais do comércio.

Por cada caixa, por cada moldura, por cada arranjo didáctico, por cada ordem de matérias, espaço de uma deriva aquém da lixeira, há caminhos pueris mas eficazes e o espectáculo do que parece inútil, e talvez seja, a insinuar o eterno recomeço das civilizações.

In Catálogo David de Almeida – Colagens – Galeria Ara, Lisboa, Março-Abril de 2002

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