O Provocador

abandonou-nos, deu meia volta,
agarrou no violino e pôs-se a tocar Mozart.

A imagem que encabeça estas linhas deveria ser suficiente como texto introdutório do trabalho que está a ser contemplado por vós e reproduzido no catálogo. O idóneo, o mais limpo, seria a ausência de escritos e opiniões alheias, só a música que emana do silêncio da matéria coada pela peneira do artista permanece. Muitos de entre vós vieram ver estas pinturas e estas gravuras porque são amigos, admiradores do pintor ou da arte, ou querem sê-lo; porque encontram na sua obra essa beleza fria que emana da música de Mozart e o mais sensato seria deixar descobrir, desfrutar, sentir, nota a nota, o seu ar, a obra.

Estamos definitivamente a falar de artes plásticas, mas, ínsito, da arte total, relacionando a pintura com a música, a gravura com a poesia, a imagem em movimento ou congelada; por volta de 1920, Guillaume Apollinaire escreveu: Há-de chegar o tempo em que as artes plásticas se assemelharão à música.

O grande provocador deixou a sua acção neste espaço, a sua paixão fria, que Aristóteles defendia, e abandonou-nos à nossa sorte. Deu meia volta, virou-nos as costas, agarrou no violino e pôs-se a tocar Mozart, e já está; mais para quê!?

Mais para quê? Para mim chega! Mas, se dou isto ao David, ele aceitaria, embora no seu íntimo dissesse: Olha para este, que habilidoso, tanto tempo para isto! No entanto, se mando esta coisa para uma instituição, bom, pode provocar uma rixa ou ser entendida como uma provocação e é claro, isso não, porque um provocador ainda vá, mas dois são de mais. De modo que, vamos tapar um pouco esta nudez ou, pensando melhor, vamos falar dela, da pureza, da liberdade e de outras realidades que esta obra estimula e torna abstractas.

Não ouvem o violino? Soa solitário, como o canto de um lugre, de um anjo a capella – jazz? – que sai da alma branca de um negro ou de um branco com a alma tingida de blues. É Mozart interpretado em chave de jazz, rasga-se uma voz, que escorre pelo arco que sujeita as cordas e amanhece, há luz, ou anoitece, para que na obscuridade se veja o volume imenso da claridade. É o violino, o piano, o baixo, a voz, tudo fundido num coro de cordas acordes, que pende em forma de quadros destas paredes brancas. É Mozart, em belíssimos passos austeros, Scelsi.

Desde o Pleistoceno e o Mioceno até Malevitch, a pintura e a gravura, para se dizerem, para mostrarem um idiolecto, criaram uma linguagem que amadureceu há décadas e que se foi depurando, com uma dignidade e uma entidade evidentes. Às vezes, poderia dizer Fernando Lopes Graça, é essa música rebelde que busca a entidade da música, a graça da expressão, a sua nudez esquiva, que rivaliza com o máximo de transparência.

A este respeito, no texto da sua exposição, em Prova de Artista, 2003/04, escreveu o mestre Rogério Ribeiro: «Não é comum que um pintor, desde sempre apaixonado pela gravura, mantenha, nestes tempos virados, uma fidelidade exemplar e uma consciência ética e moral a este tão maltratado ‘tronco’ das artes plásticas.»

Em que se diferenciam a gravura e a pintura do provocador? Conceptual e iconicamente em nada. A única distinção é propiciada pelo processo. A pintura é directa, a matéria actua sobre o suporte segundo uma aliança entre pensamento e intuição, obedecendo às normas de cada linguagem e pressionada pelos conhecimentos adquiridos quanto a composição, combinação de cores, com as suas gamas e gradações.

Para o meu sabor, prefiro a mais despojada, essa matéria que parece não existir mas incita, excita como um canto sem nome, cuja voz alarga a sensação de sentir. O que Almeida faz com o branco e o negro – independentemente da técnica e do suporte – é muito poderoso, é como se Miles Davis tocasse o trompete depois de ler Juan de Yepes, San Juan de la Cruz; é semear a luz na obscuridade, balbuciando.

A gravura está submetida ao processo de cada técnica, há que reconhecê-lo, no qual intervêm outros elementos alheios à mão do homem, ainda que os pretenda controlar a todos. Há que partir de um desejo de conhecer o que se não sabe, escolher a técnica – a água-forte, a ponta seca, a serigrafia não são o mesmo que as técnicas aditivas ou a xilografia –, trabalhar a chapa, tratá-la de acordo com o que se pretende, dar-lhe tinta, passá-la pela prensa, o papel humedecido, tirar a estampa, secá-la e depois ver o que fez o homem, e o acaso ou a máquina. E eis a obra original, que será reproduzida, de acordo com aquilo que o suporte-matriz permita.

A gravura é determinada pelo processo, o processo é uma liturgia, têm o seu ritual aferido, o seu tempo, a sua taxinomia. Cada passo conduz ao seguinte indefectivelmente, faz avançar, não tem retorno ou então falha-se e é preciso abandoná-lo. O ritual tem que ver, em termos absolutos, com o mundo do sagrado, com a dignidade com que se faz, com a capacidade de cumpri-lo.

O rito, antropologicamente, é a repetição de um fragmento do tempo original, repetição de um gesto que corresponde a um arquétipo; e com a descrição e restauração de um mito. Todo o ritual repete o gesto que ocorreu num tempo remoto, é um reflexo da criação.

Quanto mais precisa for a liturgia, tanto mais bela será, o saber embeleza-a. A ordem de prelação tem a beleza da sucessão e da sua cadência, a ordem tem beleza. A ordem criadora, dispositiva, emocional; a ordem é uma questão de inteligência, de pensamento, impõe-se impulsionada pela idoneidade da sua dinâmica, pela ambição da perfeição e não pela força.

Ainda que na pintura seja diferente, como também tem o seu processo específico, tudo isto diz respeito a ambas. O processo tem algo de sacrificial, de acto mediante o qual o profano comunica com o sagrado, através de uma cerimónia que o represente. O processo é um meio determinante da sua execução, da forma de o realizar, o resultado dependerá da consecução da excelência ou da sua ausência.

Se a obra é conseguida, se o processo cooperou para o seu objectivo, no qual o artista se reconhece e o espectador capta a sua dimensão, a peça converter-se-á num símbolo. O Símbolo é o prolongamento de uma hierofania ou a sua revelação, a sua evidência.

O processo é simultaneamente arquetípico, supra-pessoal e particular, porque é eterno, a-histórico, estrutura fundamental e repetida. Um arquétipo que adquire singularidades segundo quem o conduza, dependendo de quem celebre o ritual. Não é efectivamente singular a obra deste provocador? Mas, atenção, como Edmond Jabès, o poeta do silêncio e do deserto, escreveu, a singularidade é subversiva.

E o que é subversivo provoca, porque a subversão hoje é isto, uma obra gerada por um processo, uma manifestação do pensamento, uma ordem voltada para a consecução da dimensão, o florescimento de um ofício que, a partir da componente artesanal se eleva para exprimir uma atitude, não para repetir um modelo mas para criar modelos consequentes e transcendentes.

A beleza do processo! Quando o processo é rigoroso e obedece às normas que o consolidam e engrandecem, é belo. A beleza é uma qualidade, o processo um devir, a consequência de uma acção. Mas haverá alguma manifestação artística que não esteja dirigida para a consecução da beleza? Quem for precipitado dirá claro que sim, o conceptual ou o…! E eu respondo que a beleza não é património da forma, da cor ou do conceito, nem do ícone ou de um movimento; a beleza é uma categoria, um estado de sublimação da realidade, é exaltação da espiritualidade, é fome de perfeição, é provocação.

Numa entrevista que fiz a uma pintora do sul espanhol, do recanto mais oriental, radiante de cal e ternura, Cármen Pinteño, esta respondeu-me sobre estes temas o seguinte: A arte foi sempre uma provocação, mas construtiva, que procura alguma coisa; se houver alguma coisa para contar deve ser feita, há tantos caminhos como seres humanos.

Segundo a primeira acepção do Diccionario de la Real Academia Española, provocar é “incitar, induzir alguém a que execute algo”; provocação é sinónimo de repto, desafio, confronto, incitamento.” Salvador Dali, virtuoso em tantas coisas, poeta e pintor, já nos deu essa lição, dizendo: “Aquele que quer interessar os outros tem de os provocar.”

A provocação sempre há-de ser construtiva, eis ao que se referem pintores tão distantes e diferentes como os dois citados. Provoca o que escasseia, o que vai contra a corrente, por isso em momentos de indigência intelectual, em época de consumismo feroz e de pobreza, provoca o sensível, mas intenso; o ordenado, o fecundo, o processual, o belo, ante uma ditadura do mau gosto e da frivolidade.

A provocação intelectual, de alto nível, e a arte é-o, não tem nada que ver com a política vulgar nem com a religião alienante. Em política, hoje, salve-se quem puder!, não se provoca, rouba-se; na religião, restringe-se a liberdade do homem, sequestrado para empresas nem sempre saudáveis.

Camus, Albert Camus, alguém sobre quem não recai a suspeita de ser tergiversador, deixou escrito: “A capacidade de atenção do homem é limitada e deve ser constantemente estimulada pela provocação.” Saudemos esta provocação de David de Almeida, como um toque de atenção aos rumos industriais e mostrengos, falsários e usurpadores, pelos quais caminha a arte, actualmente, numa indecente maioria!

Sempre foi subversivo pensar, e continua a sê-lo, mas, agora, mais do que nunca; o pensamento é uma provocação e não é lícito, nem se pode consentir, que a sua ausência nos governe, porque isso só conduz, de todo, ao desgoverno geral. Não há arte sem pensamento, não há pensamento sem processo, sem a decisão de pensar. Martin Heidegger explica tudo isto, com meridiana claridade, em “Que significa pensar?”, Editorial Trotta, Madrid, 2005, num conjunto de textos dos cursos que deu em Friburgo de Brisgovia, em 1951-52.

Maus tempos, não só em Portugal, em que há que defender o evidente, em que o idóneo provoca, em que a obra bem feita não é um símbolo a esgrimir, senão um gueto que é preciso explicar e defender; maus tempos para a ternura e a doçura intelectual que a decência augura!

Mas, calma, não estamos a ceder; esta exposição, este ritual de elegância, que mostra parte dos dez últimos anos de expressão plástica de Almeida, demonstra-o. Essas serapilheiras, nos ossos, com pintura como se fossem depositárias das escamas do tempo, têm uma porta de prata ou um caminho de malaquite, que nos proporciona uma via, não de escape, mas de progressão. Se queremos a vida, se nos interessa o mundo, como vamos escapar dela, dele, sem intentar melhorá-los, sem mostrar o que sentimos?

A pureza, em arte e ailleurs, tem sofrido o acosso dos ignorantes, dos ousados, daqueles a quem falta discernimento. Confunde-se hoje a pureza com muitas coisas impuras, bastardas, espúrias, com a ausência, com o nada. Todavia, a pureza em arte não existe apenas no emprego de uma técnica tradicional, nem na recuperação do antigo; a pureza em arte está no genuíno de cada ser, na plena identificação, na beleza, na concreção da presença. Juan Ramón Jiménez, o imenso poeta do espanhol, pedia: “Inteligência, dá-me o nome exacto das coisas!”, como o pintor quer a cor exacta, a precisa cartografia do seu desejo, para chegar à exactidão, ao miolo, à semente que o endocárpio oculta.

Para alguns, a pureza é o vazio do pensamento, mas entre o vazio e Noguchi há um abismo, o mesmo que há entre esses monos, que se querem impor como instalações, esses vídeos reiterativos coalhados de nada e a música de Erik Satie.

Justamente essas gravuras das séries Biblos, Fray Luís de Léon, poderiam ser o espelho mágico da música de Satie, em branco e negro, Descriptions Automatiques, por exemplo. Ou a Ode a Salinas de Fray Luís. A pureza em arte está em chegar ao intelecto e ao coração do homem, do amador, conjugando estética e presença, nível. O puro não é o que ninguém entende, o que vem de longe, pelo mero facto da sua procedência, mas o que procede de um estado de inocência do homem ou o que não é feito por sua mão mas pela máquina por si manejada; a exposição da realidade mais limpa do ser.

Kurt Schwitters – veem a relação ou não?, na obra exposta na Casa da Cerca era evidente e em peças concretas desta exposição também! – referindo-se a Jean Arp, nada suspeito de tradicionalista, de continuista ou de gregário no estilo internacional, disse: “Nutre-se da pureza”.

Que pureza é a de Arp? A pureza, sem adjectivos, a que se constitui em forma essencial no tempo, embora sem defender nem postular uma forma concreta. A pureza não é o artisticamente correcto só porque um clube de manda-chuvas considera que assim seja, para controlar, mais que as emoções e os sentimentos, os dinheiros que essa arte (?) gera.

Já não provocam um feto conservado em álcool, uma virgem feita de excremento de elefante ou um tubarão dissecado que se desfaz. O que provoca é o bem feito, pela sua escassez e pela pressão da ditadura do todo-poderoso vale tudo; o que provoca é a nudez e a sua busca, o olhar sobre si quando toda a gente olha noutra direcção ou é cega, sem chegar a reconhecê-lo. O que provoca é essa faculdade de ser capaz de criar um mundo de subtilezas, conjurando a matéria até que se poetiza.

Esse Jean Arp, poeta e pintor, dada e puríssimo na sua renovação de linguagens, repetia: A arte é um fruto que cresce no homem… O fruto espiritual do homem.” No entanto, não convém confundir o espiritual com a espiral de torpeza e de ausência de conteúdos. A pureza é uma sublimação da realidade, com ambição estética, com processo, com passado, porque em arte nada se improvisa.

O provocador pôs as antenas a funcionar na forja da sua infância. Ali aprendeu que utilidade tem o fogo e o que ele conserva e purifica. Depois foi tocando a todas as portas, atrás das quais pressentia a música, aprendeu a usar os instrumentos, exercitou-se com eles. Agora sabe distinguir que entre o deserto e um rosário de dunas cabe uma praia. E canta, em sua plástica musical, com a força de um vendaval de seda que acaricia a pele até a aquecer e colorir. É Haendel, no seu concerto para dois violoncelos, interpretado pelo ar, pela luminosidade da alvorada e da manhã, do que vibra no universo e reverbera na vida. O Scelsi interpretado pela neve.

Olha intensamente a curva da nuca de uma mulher, até que ela sinta o teu olhar; observa, então, como se arrepia a sua pele, e a tua, aqui ninguém se salva, e como gira a cabeça, em silêncio, e com um olhar, exultante de plenitude, agradece a intensidade e a tensão da tua cortesia. A partir da óptica feminina é possível que o processo recíproco não mude, não o sei. Assim, há que mirar esta arte, até que te devolva o olhar, até que sintas um formigueiro difícil de localizar, mas que te impele.

Charles Morris definiu, não sem transcendência, que “a arte é a linguagem da comunicação de valores”, de tal modo que os exponha por forma a poderem ser captados pelo apreciador. Se a ninguém interessa o que faz um homem, é provável que o equivocado seja ele. Há, em princípio, que saber criar uma linguagem, que essa linguagem comunique, que essa comunicação possua valores, e que os valores sejam apreendidos. O resto, não é silêncio – o que queriam mais? -, o resto é nada.

A linguagem plástica é um conjunto de elementos materiais, que manipulados pelo artista com ambição criativa, articulam um ícone, incrustado no pensamento mágico, através do qual comunica com os outros: é a dinâmica que nesta obra se evidencia.

Não queria, mas não tenho outro remédio, senão recorrer a algo que é público e notório. Quando, em 2006, se apresentou no Círculo de Belas Artes de Madrid, o álbum Poemas Possíveis, de José Saramago e David Almeida, o autor de A Jangada de Pedra manifestou: “A primeira vez que estive ante uma obra de David de Almeida, senti como uma sacudidela, a sua contemplação produziu-me uma comoção.” Isto é assim, uma obra de arte não se explica, sente-se ou não, logo podemos tentar justificar essa acção, mas já pouco importa, o fundamental foi a sacudidela, o golpe de luz que grava a memória, que nos tatua o interior.

Puro, genuíno, autêntico, é o que chega, o que sacode o homem, o que o arranca da sua lenta agonia e lhe devolve a vida. O que procede do mais íntimo e pessoal de cada ser. Que aquilo que deveria ser norma se converta em excepção não é senão o sinal de um fracasso.

Mas, tão pouco é preciso rasgar as roupas ou dramatizar; a arte deve exercer essa missão: a provocação construtiva leva a infinitos horizontes. Para o grande poeta chileno – não se privem da sua poesia, é um esplêndido paraíso! – Vicente Huidobro: A poesia é um desafio à Razão; parafraseando-o, podemos afirmar que a arte é um desafio à razão, à emoção; uma provocação necessária, para o homem actual e para grande parte do que hoje em dia se postula como arte.

Cada vez tenho menos a pretensão de convencer quem quer que seja do que penso e vejo, o que não significa que deva deixar de dizer o que sinto.

O provocador, alheando-se, encerra-se na sua oficina para explicar o orbe a partir da expressão do seu mundo. Ali compõe as suas partituras, que depois nós interpretamos. Tenho a minha versão, cada um deve exercitar-se e ter a sua, mas, em definitivo, a que mais estimo, a que mais me agrada, a que me eleva, é a que é executada pelo próprio autor, por isso espero que soe o seu violino e se faça a noite que descobre o seu esplendor.

É Vivaldi, às vezes Mozart; outras, o trilo do diabo, de Tartini, que actua como um relâmpago envolto numa rosa ou o canto de um rouxinol noctívago. A música calada, a memória do fogo, o sorriso das águas, o silêncio do veludo, o lamento de um deus lusíada que observa, sem nostalgia, a espuma e o sal do oceano, a distinção entre o sóbrio e o ébrio de sensações. Bendita a provocação que nos salva, a arte. Silêncio, que o provocador continue a tocar!

Tomás Paredes
Presidente da Associação Espanhola de Críticos de Arte

pt | en