Vida (in)quieta

José Luís Porfírio

Como na Roma das origens a forma destas pinturas é quadrada, procurando assim, imediatamente, um máximo de estabilidade, um máximo de equilíbrio e um máximo de presença, a monocromia à superfície de cada pintura, texturada embora, só vem acrescentar todos estes valores. Sobre esta base de pintura ergue-se uma, muito simples, forma metálica, cobre oxidado, ferro, ou aço inoxidável, assim a sombra soma-se à sombra numa estrutura captadora de luz, ou então um espelho baço nasce nessa superfície e os brilhos podem surgir, aparentemente domesticados, como todos os efeitos que David de Almeida sabe produzir.

Dir-se-ia, quase, que estamos perante projectos de arquitectura, ou de estudos de estabilidade, perante objectos impassíveis, estáveis, materialmente poderosos e feitos para durar, as marcas do trabalho, da mão do artista animando a superfície da pintura, polindo uma peça de metal, juntam-se ás de um tempo simulado, oxidando as superfícies do cobre, tornando-as mais pintura ainda, uma e outras trazem, consigo não só a marca do trabalho da mão, mas ainda a vontade de o afirmar, como se de um manifesto se tratasse.

Este equilibrado confronto entre um campo, ou uma base, equivalente a um muro, e uma placa metálica, pode ser também o modo que o pintor tem para introduzir na sua pintura um outro universo que conhece particularmente bem, o da gravura, numa homenagem implícita á placa de metal, á sua exuberante materialidade e a uma beleza que, habitualmente, permanece oculta. Unindo na mesma superfície o acrílico e o metal, David de Almeida casa duas matérias que lhe são especialmente gratas: um fundo de pintura e uma forma coisa que é mais do que uma evocação, já que se institui como uma forte presença, ou como um acontecer que acrescenta, reforça, ou perturba a superfície da sua pintura…perturba?

Percorramos este conjunto de pinturas, a estabilidade dos formatos, primeiro, a unidade dos muros, depois, vejamos, a seguir, como as formas metálicas se lhes acrescentam acentuando esses mesmos valores e, pouco depois, como se dividem, abrindo-se em frestas e em multiplicidades para acabarem por se instituir como exercícios de desequilíbrio e de instabilidade, assim ao tempo de trabalho da mão, ao tempo do desgaste e da erosão simulada, um outro tempo se junta no que é um subtil princípio de movimento.

A recente invocação a Malevich de uma série de gravuras, pode dar-nos a chave, pode ajudar-nos a entender esta perturbação, entender e…ir mais longe também, verificando como a superfície do quadro se pode transformar num lugar de passagem, num lugar atravessado e percorrido por forças e tensões, num espaço do estar e do passar onde a estabilidade, afinal, não é mais do que um momento num devir bem mais diverso, bem mais complexo. No seu conjunto estas pinturas recentes fundam uma presença e um devir, uma certeza e a dúvida correspondente, e mostram, com exemplar sobriedade, como a pintura é e funciona, sempre, mesmo que de tal não nos apercebamos, como um campo de forças, como uma espécie de sensor de corpos e travessias momentaneamente registados, numa superfície que, só aparentemente, é plana.

Vida (in)quieta afinal é esta pintura de David de Almeida!

In Catálogo Provocação, Fundação D. Luís I, Cascais, Janeiro-Março, 2006

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