Exposição Galeria 111

Fernando de Azevedo


David de Almeida vem oficinalmente da prática da gravura onde adquiriu a independência nascida do domínio das técnicas e do saber o que fazer com elas.

A gravura também lhe deu a conhecer a graduação de valores que vai do iluminado à obscuridade, a antinomia mais expressiva que há e que comanda o traçado e a expressão: o preto e o branco. Com esta oposição reatou ele num discurso gráfico, actual e necessário, certas mitologias que, nos nossos finais de 70 e começos de 80 pareciam impossíveis de recuperar. Mitologias da história de um povo perdido por Áfricas, por mundos, lendas, heroísmos e desastres.

Da figuração que então lhe satisfez nos satisfez, recuos e actualizações sentimentais de português, pouco ficou porém para posteriores percursos que serão dos seus percursos de hoje. A não ser onde se projectavam: no papel e no branco. Mas o branco já era uma cal, algo de sólido como luz e de imponderável como superfície; lugar de inscrição de signos, de afeiçoamentos às rugas do tempo sobre os sinais rupestres, esse branco encorpou-se, simulou ele mesmo a pedra, tornou-se seu duplo, seu simulacro transposto, ritualizado. Só a luz, tal como os primeiros homens a haviam pensado ao gravar na pedra, ritualmente, o sonho dos seus sinais, os revelava, como uma gravura branca, a seco. Um pouco assim continua a ser, só que, presentemente, o papel manual, branquíssimo e opulento que David de Almeida fabrica ele mesmo, que sempre fabricou, não precisa do alibi pré-histórico para se aceitar ser uma superfície fecundada de sinais. Invoca a tela tal como dantes invocava a pedra, guardando ao mesmo tempo a sua identidade quasi sacral de papel, de material de culto. Sobre ele, tornado tela, por vezes mesmo a ela somado, acopulado, desenham-se reminiscências, sim, do traço antigo, do primeiro traço de todos os traços, aquele com que o homem ocupou o espaço de uma parede natural, num acto de conquista ou de exorcismos, não se sabe ainda, jamais se saberá. Ou, também, de prazer e de primeiro reconhecimento pela mão ajudada com os olhos, porque não reconhecê-lo assim, a esse acto, ao primeiro acto da pintura? David de Almeida é um artista apaixonado pela fortuna de o homem ter tido história, de se saber situado entre o seu conhecimento e o que se sabe do começo do conhecimento. Há uma beleza, não só ritual, nos objectos de culto que muito especialmente o interessa; interessa-lhe uma beleza formal também coincidente com os primeiros mitos, quando parecia não haver ainda um olhar habituado às formas, capaz de as transcrever como hoje; mas onde a forma conseguida não se desprende nunca, mesmo hoje, da vitalidade que concentra e da adoração que servia. Nalguns dos seus quadros, uma tira de zinco desenha uma forma como um sulco, penetrando a massa do papel, sulco que é ao mesmo tempo uma muralha, uma medição de territórios. Para lá e para cá do animal rupestre, por exemplo, está o seu e o tempo dele, o tempo de ambos planificado; são territórios prospectivos onde se exercita uma experiência de pintor. Um pintor em quem os materiais provocam uma fascinação oficinal e que, sobretudo, ama fazer encontrados contrastes impossíveis: assim, a associação da chapa de ferro e da massa do papel e ainda a cor. Como se o ofício de ferreiro, que de algum modo tocou a sua infância, viesse agora recuperá-lo, a ele, na amplitude demiúrgica que o ofício do ferro teve sempre. Entre o papel, matéria frágil, tornado matéria forte e o ferro, trabalhado, tornado matéria, não direi frágil, mas delicada, dúctil e obediente ao desenho e à sugestão, trocam-se os contrastes que sempre agradaram a David de Almeida. E os simbolismos que permitem à sua arte a viagem ininterrupta do ofício à sua transcendência.



27 de Maio de 1989
in Catálogo Exposição Galeria 111, 1989

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