DIVERGIR, DIVAGAR, COMBINAR
uma viagem de David de Almeida pelo tempo,
interpretada nas palavras do próprio por
Luiz Fagundes Duarte


David de Almeida é um artista da luz. Depurado na forma, eclético na técnica, informado no discurso, transfere para as suas obras – pintura, gravura, escultura – aquela leveza que só a luz, em todos os seus cambiantes e tensões, é capaz de relevar. Uma luz que vem de dentro dos próprios trabalhos, mas subtilmente concebida para dialogar com a luz externa, no sentido da luz ambiente em que cada peça vier a ser integrada, e também da luz que emana do olhar do espectador – que assim é chamado a assumir o papel de cúmplice no processo de composição de cada obra. Artista de vocação e comportamento fisicalistas, bebidos na boa tradição dos artesãos – a sua escola primeira foi a oficina paterna de ferreiro de província –, corpóreo mesmo, David de Almeida assume a sensualidade dos materiais com que trabalha como se de extensões do seu próprio corpo – das suas mãos, em particular, e do seu requintado sentido estético – se tratassem.

Autor de uma vasta obra que se espalha por praticamente todas as artes plásticas, David de Almeida é, mesmo assim, autor de uma obra que se caracteriza por uma considerável solidez formal e conceptual, que a cada peça é testada e se actualiza, e em cada peça ganha novos sentidos e vê abertos novos caminhos de expressão: como se assistíssemos a um movimento perpétuo de criação sucessiva, em que cada obra contém os genes da que se lhe segue, e esta não renega a anterior. Fruto de uma apurada noção do processo histórico, David de Almeida dá-nos, a cada peça que compõe – ou que constrói? – uma lição de inteligência dos materiais com que pontualmente trabalha e das técnicas que para tal utiliza e que na sua essência não diferem daquelas que o tempo, e a experiência do homem no tempo, trouxe até si. Até nós.

Homem igualmente dado à escrita, mais por necessidade de prestar contas do que faz e que geralmente escapa ao espectador da obra acabada – um pouco como fez Edgar Allan Poe no ensaio Philosophy of Composition (1846) para, a propósito do processo de composição do seu poema The Raven, desmistificar a ideia da criação artística, e concluir que ela não é um acto espontâneo, mas o produto de um aturado trabalho metódico e analítico –, David de Almeida faz prova de uma excelente capacidade de produzir discurso, de urdir narrativas, sem no entanto ficar amarrado a representações figurativas que, no mínimo, lhe introduziriam ruído na obra.

Esta capacidade narrativa, plenamente demonstrada nas peças que agora expõe, obriga o artista a nunca perder de vista a noção de história – a sua noção de história –, e bem assim a consciência de que ao artista não cabe criar novas formas, que nos seus princípios são limitadas, mas antes novas maneiras, essas sim ilimitadas, de as analisar, combinar, interpretar e, no limite, de as tornar dinâmicas e produtivas. Numa história interminável, escrita na pedra – para que permaneça, como permanecem até hoje, as gravuras rupestres –, escrita no tempo – porque é no tempo que a obra de arte se pacifica –, mas escrita sem nomear – porque dar nome às coisas é condicionar, à cabeça, a possibilidade de as interpretar.

[ Escrever na pedra ]

¶ Mais do que as obras que compôs, o que nesta mostra de arte mais se expõe é o autor delas, que de si próprio faz narrativa, seguindo os caminhos do tempo. E o tempo desta narrativa começa na pré-história, com uma vista de olhos sobre alguns símbolos gráficos que alguém, algures no tempo, deixou gravados na pedra…

… e aqui estão eles, enigmáticos, esses símbolos. Neles não há, que os consigamos entender, nomes de gente, nem identificação de grupo social, tampouco neles deciframos referências a factos de vida ou de morte. Para nós, hoje, eles são o que são – gestos de escrita na pedra, corpos que brilham sem alma que se lhes sinta. E no entanto sabemos que eles são memória de um tempo, circunstância de um lugar, manifestação de uma cultura, gestos de uma sociedade que produzia e trocava informação recorrendo ao simbolismo gráfico para exprimir o conhecimento de si e marcar, diferenciando-a perante a dos outros, a sua própria identidade. São significantes em estado puro, porque desprovidos de significado tal como hoje o entendemos, são formas de escrever de acordo com regras de uma gramática idiossincrática e de um uso cujos parâmetros se perderam no tempo mas que, necessariamente, fariam parte de uma cosmologia e de um sistema mítico – e que a ciência de hoje, no seu afã de ler o passado a partir do nosso presente, tende a arrumar nas gavetas da petro-pictografia, da paleografia ou da epigrafia. Objectos de museu.

Pois que seja.

Cabe, porém, ao artista reinterpretar estes símbolos, deduzir-lhes a gramática e a sintaxe, analisá-los, redesenhá-los, recompô-los, transformá-los em texto, inferir-lhes narrativas, reavaliá-los enfim no contexto da arte – na medida em que eles são também o resultado da técnica, ou seja, da capacidade humana de criar os meios e inventar os procedimentos necessários para criar novos objectos, ideia ainda tão bem conservada na linguagem popular quando se ouve o marceneiro, o ferreiro ou o pedreiro a falarem das suas artes, ou os construtores de estradas a classificarem como obras de arte os túneis e viadutos que tornam possível, no terreno, o correr dos caminhos que desenharam no papel. A arte de transformar aquilo que um dia, num dado contexto, há-de ter sido figurativo – um sistema de formas reconhecíveis no imediato como representações de ideias, factos, objectos –, em elementos estéticos puros – linhas, formas, cores, texturas dos materiais, simples em si ou complicadas em combinações – isto é, em abstracções.

Dos círculos concêntricos das pedras gravadas de Serrazes ou da Seixa – calendários do tempo e das estações, quem sabe? –, ou do cervo em movimento da pedra de Lanhelas – para uso dos caçadores? –, segue o artista de hoje no seu caminho de leitor de pedras, e os seus passos conduzem-no – atravessado o mar, na sua versão pessoal da história trágico-marítima, e aqui também se registam alguns traços da memória das caravelas – às pedras erectas de Stonehenge, síntese do tempo e do conhecimento que hoje se desconhece. E por ali se fica, meditando, como o monge da lenda que, esquecido do tempo, se ficou por trezentos anos a ouvir o canto mágico do rouxinol. Porque a arte, reinterpretando as formas e os objectos, reinterpreta o tempo. E neste, o homem é nada.

[ Escrever no tempo ]

¶ “O tempo, esse grande escultor”, apetece lembrar Marguerite Yourcenar. E a relação semântica entre “esculpir” e “escalpar”, que significava raspar, arranhar, tão bem achada pelos gravadores e escultores para designar a técnica de retirar da matéria bruta o acessório para encontrar o essencial…

A história do artista que aqui se expõe não passa pelas aulas das escolas, passa pelas bancas das oficinas. E nestas, são os materiais, não os modelos pré-concebidos, que impõem as técnicas com que são trabalhados. Da pedra e do ferro, da água e do fogo, das lamas e das madeiras, em si ou combinados, se constroem sentidos. Das cores e das texturas. Cabe ao artista, na sua arte de manusear os materiais, mesmo os mais primitivos, descobrir as vozes que dentro deles se encontram, e soltá-las para que sejam ouvidas e entendidas. Utilizando as técnicas – as artes – dos seus antecessores, o artista inscreve-se na sequência histórica de agentes que, no seu tempo e no seu contexto cultural, se assumem como mais um elo na cadeia sem fim que é a narrativa da história. As técnicas são perenes e as mesmas, os materiais também, o que muda é o artista e as circunstâncias de tempo, de lugar, e naturalmente de tecnologia. A cada gesto de criação, de actualização das suas capacidades e conhecimentos técnicos, de manuseamento de materiais, eles próprios sujeitos do processo histórico de transformação inerente à mera condição de existir, o artista produz – ou reproduz – conhecimento. Um conhecimento, porém, que só pode ser resultado da sua experiência pessoal, não das experiências alheias traduzidas e adaptadas ao seu idiolecto – um pouco à maneira como pensava Montaigne quando escreveu que não existe desejo mais natural do que o do conhecimento, que nós nos socorremos de todos os meios para o alcançar, e que quando nos falha a razão recorremos à experiência.

É de experiência que nesta exposição se fala. E como na natureza e na vida das pessoas nada existe ou funciona só por si, inconcebível é entender o branco fora do seu diálogo com o negro, ou com as outras cores do espectro que o constituem, a forma plena e opaca sem os cortes que lhe definem os limites, a maciez da madeira ou do papel sem a frieza dos metais, a pedra sem o chão em que assenta, a luz sem as sombras, o liso sem as rugosidades, a linha recta sem a curva, e o bidimensional da pintura sem o tridimensional da escultura, tendo a gravura como traço de união entre ambas. Da experiência de quem parte do físico para o conceptual, do utilitário para o estético, do figurativo para o abstracto, da coisa para o símbolo – seguindo a cada passo aquele movimento ascendente e aparentemente divergente que encontramos em qualquer processo histórico – com as suas miríades de objectos, artefactos, ideias e casos –, mas que acaba, no entanto, por convergir no essencial: apesar de tudo o que em arte e técnica foi sendo produzido ao longo do tempo, nada de essencial distingue o artista de hoje – gravador, pintor, escultor – dos seus mais longínquos antecessores. Porque, a cada obra que enceta, tem o artista que se confrontar com o domínio dos materiais, e esses, e mais os instrumentos usados para os trabalhar são, mutatis mutandis, praticamente os mesmos. Aquilo que muda, são os olhares que o tempo permite e as interpretações que a subjectividade possibilita – ainda que correndo o risco (outra vez Montaigne) de se dissipar a verdade à força de tanto a interpretar.

Mas não será a verdade, ela própria, uma escultura do tempo?

[ Escrever sem nomear ]

¶ Das leituras e reinterpretações de elementos – letras?, sílabas? – de monumentos petro-pictográficos, que encontramos como porta inaugural desta exposição, passando pelos trabalhos de pintura contaminada por elementos e técnicas da gravura e da escultura, chega-se, como peças de fecho, a objectos que resultam exclusivamente do acto de esculpir – ou escalpar? –, e assim inscritos na gramática da arte da escultura. David de Almeida: pintor, gravador, escultor?

Essa é pergunta que não há-de ter resposta, desde a Antiguidade que a não tem. Tal como a língua que usamos para comunicar é constituída por um sem número de factores que ultrapassam os elementos e as regras da gramática – como se gramaticalizam as entoações, as tensões de voz, os gestos, as afectividades, as emoções, até mesmo as memórias paralelas, as cumplicidades entre os agentes da comunicação? –, a obra de arte é uma síntese de vozes e de interpretações, de novidades e repetições, de fazeres e refazeres, e é sobretudo uma resposta de momento às perguntas do momento. Não pode haver compartimentos que a separem do fluir dos dias e das emoções, nem academismos espartilhados por modelos anteriores ou exteriores ao artista na sua relação directa com os materiais e com as respostas que eles lhe sugerem. Há frases que são de pintura, conjugações que são de gravura, textos que são de escultura, e cada uma destas artes tem as suas frases, as suas conjugações, os seus textos – sendo que a narrativa da arte usa igualmente as frases e as conjugações e os textos, quaisquer que eles sejam, onde quer que se encontrem, venham em nome de quem vierem, e não de quem buscamos. Como na poesia – e lembre-se Ricardo Reis e o seu “Corre o rio onde encontra seu retiro | E não onde é preciso” – aquele mesmo rio pelo qual não merece a pena ter cuidados “porque ele sempre correria, | E sempre iria ter ao mar”.

Os objectos que aqui se expõem, e neles o seu autor, são assim porque a narrativa que os enforma a isto chegou. Como o rio que naturalmente corre para o mar. Pedra a pedra, terra a terra, tronco a tronco, metal a metal, cor a cor, forma a forma, acidente a acidente – nas mãos do artista, das quais saem objectos a que a inteligência não atribui títulos. Objectos sem nome, portanto. Porque nomear é classificar e, logo, reduzir. Quando, pelo contrário, a missão do artista é divergir, divagar, combinar…

… e por isso – que mais dizer?

In Catálogo Exposição Palácio Galveias, 2010-2011

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